Ivandro da Costa Sales
Os Conselhos Federais e
Estaduais de Educação existem há muito tempo no Brasil, ligados diretamente ao
Ministério da Educação e às Secretarias Estaduais de Educação.
Entretanto, eram
compostos de pessoas designadas pelos governos federal e estaduais com funções
bem específicas de interpretar leis e normatizar a educação escolar. Só a
partir da Constituição de 1988 é que se oficializa no Brasil a gestão
democrática das políticas, ou seja, uma
gestão compartilhada por representantes de organizações governamentais e de
organizações da sociedade civil. É a partir desse momento que os Conselhos
de Gestão estão previstos nas leis orgânicas dos Municípios e são praticamente
exigidos em todos os programas e projetos governamentais brasileiros, assim como
nos programas e projetos de organizações governamentais privadas
internacionais.
Constatamos, a partir da Constituição
de 1988, a
presença atuante de um novo ator político na sociedade. Esse ator é a sociedade
civil; são grupos de interesses que surgiram fora do aparelho governamental e
fora das fábricas e que lutam de diferentes modos pela realização dos mais
diversos interesses e garantia de direitos.
Antes desse período, a gestão da
sociedade, tanto nos países capitalistas como nos países socialistas, era
realizada unicamente pelo governo, que, por isso mesmo, confundia-se com o
Estado. Cabia ao governo, e só a ele, pensar e cuidar do bem comum. A
identificação de Estado com governo era tão profunda que ainda hoje se confunde
Estado, com governo.
Fala-se de um como se estivesse falando do outro. Por isso, as pessoas
consideram tudo o que é governamental como público e tudo que é civil como
privado, esquecendo-se que público é o que é discutido por todos ou pelas
maiorias e o que se destina a todos ou às maiorias.
Esse monopólio do governo na gestão da
sociedade deu origem a uma falsa concepção de Estado como sendo algo separado,
externo e superior à sociedade, impedindo que o percebêssemos como uma função e
não como um ente. Era o que se pode chamar de Estado Restrito.
Na concepção atual, Estado
é a gestão da sociedade que atualmente é feita por representantes
governamentais e representantes da sociedade civil. Temos, portanto, o
denominado Estado Ampliado, com dois
braços, o governamental e o civil. O governo é o braço governamental do Estado,
e as organizações da sociedade civil são o braço civil. As organizações da
sociedade civil são, portanto, Estado e têm consequentemente uma função estatal
de gerir, juntamente com os representantes governamentais, as políticas públicas.
Os conselhos seriam, então, órgãos
estatais de gestão de políticas compartilhadas pelo governo e por
representantes da sociedade civil.
Uma
noção mais precisa de participação
Neste contexto, torna-se oportuno
definir o que entendemos por participação. Isto porque sob o termo ‘‘participação’’
podem ocultar-se, algumas vezes, práticas muito autoritárias.
Participar
é ter poder de definir os fins e os meios de uma prática social, poder que pode ser exercido
diretamente ou através de mandados eletivos, delegações ou representações. Participação
poderia ser traduzida como uma estratégia de aprendizagem no sentido de exercer
poder, de se fazer levar em consideração, de fazer valer a importância econômica,
política e cultural das pessoas, categorias ou classes que estejam inseridas no
processo social. Neste sentido, participar implica definir e redefinir permanentemente
os fins e os meios das práticas que estão em desenvolvimento.
Participação, portanto, é a aprendizagem do poder em todos os momentos e lugares em que se
esteja vivendo e atuando. É fundamentalmente uma postura que se opõe à
submissão em todos os âmbitos, tanto na família quanto nos partidos políticos. Diferenciamos,
assim, participação da simples fala ou presença em reuniões, consultas e
planejamentos comunitários, ou em votações em assembleias. Todas essas situações
e comportamentos podem se tornar oportunidades de participação se forem
instrumentos de aprendizagem do exercício do poder. Por outro lado, tais atitudes
negam a participação quando são realizadas sob o comando de dirigentes
autoritários numa tentativa, por vezes muito sofisticada, de dar a impressão de
que há participação.
Contrariamente ao que muitas vezes
pensamos, participação tem muito a ver com disciplina, definição de
responsabilidade e criação de mecanismos para garantir a realização das
decisões coletivamente acordadas, bem como com sanções para quem, concernido
por aquelas decisões, não as toma em consideração ou as infringe. Disciplina,
responsabilidade, criação de mecanismos ou sanções só se opõem à participação
quando são impostas por alguém ou por algum mecanismo sem legitimidade. A
obediência a normas definidas legitimamente por pessoas, grupos ou categorias, seja
diretamente, seja por mecanismos de representação, é uma exigência de afirmação
da participação.
Se participar se relacionar com o
exercício do poder, convém dizer algo mais sobre os tipos e níveis de poder,
aqui entendido como a capacidade de influenciar o pensamento ou direcionar a
atuação de indivíduos e grupos sociais.
O exercício do poder pode basear-se na
força física, em decretos, em leis, em força armada ou em outros tipos de
coação. É o poder tradicionalmente exercido pelos governos autoritários. É o
poder de dominação em contraposição ao poder de interpretar, expressar e
realizar os interesses, as reivindicações e os direitos das bases sociais,
poder tradicionalmente exercido pelas organizações da sociedade civil. Não se
entenda, entretanto, que os governos não possam interpretar e expressar
interesses e que na sociedade civil não se exerçam formas de dominação.
Supõe-se, aqui que os poderes mais fortes e as leis mais consistentes são
justamente os poderes e as leis que expressam e interpretam os sentimentos e um
querer coletivo mais amplo.
Conselhos
em uma democracia mais ampliada: desafios da gestão democrática
A garantia da gestão democrática, com
a participação efetiva de representantes da sociedade civil, enfrenta diversos
desafios: um deles, no caso dos conselhos, é a consideração que, no Brasil,
convivemos com dois tipos de mandato. Os representantes dos Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário têm um mandato para, durante um tempo bem determinado, representar
os interesses mais gerais da sociedade, enquanto os representantes da sociedade
civil, nos conselhos, têm um mandato específico para defender e realizar
interesses também específicos.
Essa diferença na natureza
e na duração do mandato tem causado alguns problemas pelo fato de que os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ainda se sentem mais
representativos e mais legítimos do que os representantes da sociedade civil. Aos
Conselhos Municipais de Educação, por exemplo, cabe apenas elaborar normas
complementares às leis e normas do Conselho Nacional de Educação ou interpretar
as leis existentes. Suas deliberações devem ainda ser homologadas pelo Prefeito.
Além do aspecto legal, há
ainda outras dificuldades para o exercício de uma democracia mais participativa
do que a democracia parlamentar representativa que conhecemos mais de perto. É
que enquanto os representantes governamentais nos conselhos detêm mais
informações e têm o hábito de gerir políticas públicas, os representantes da
sociedade civil:
a. não se dedicam
exclusivamente ao serviço público como os representantes governamentais;
b. devem cuidar também
de sua sobrevivência através de outras atividades;
c. não têm tradição de
gestão de serviços públicos;
d. e por isso estão bem
menos preparados pra serem gestores do que os representantes governamentais. Acrescente-se
a todas essas dificuldades o enorme poder que a instância executiva tem de
influir na eleição dos representantes das organizações da sociedade civil.
Parece, entretanto, que a maior
dificuldade de exercício de poder por parte dos representantes da sociedade
civil está, sobretudo, na baixa representatividade dos representantes da
sociedade civil, ou seja, no afastamento que ainda existe dos dirigentes em
relação às suas bases. Ainda acontece que, se o Poder Executivo desmoraliza as
decisões dos conselhos, a base social dos dirigentes da sociedade civil nem
chega a tomar conhecimento dessa desmoralização, tão longe ela está da atuação
de seus dirigentes ou tão longe estão os dirigentes com relação as suas bases.
Supõe-se que a origem dos problemas e também
suas possíveis soluções estão no modo de organização e no modo de gestão da sociedade.
Por isso, convém que os conselheiros não se limitem ao nível da Legislação e do
Regimento Interno dos conselhos, mas pensam em contribuir para um modelo de
sociedade que facilite a realização dos direitos que eles têm obrigação de
defender e tentar realizar.
O processo fundamental da sociedade é
a parceria, a aliança e o enfrentamento de interesses de muitas ordens, alguns
afirmados e tentando se perpetuar e outros buscando a duras penas se fazer
valer. Por isso, os conselheiros devem estudar permanentemente o contexto de
interesses, tanto para entendê-lo quanto para saber que interesses e direitos querem
ver realizados e que interesses e privilégios querem ver limitados.
No caso dos Conselhos de Educação e
dos Conselhos Escolares fica mais claro saber por quais interesses e direitos
batalhar. É, fundamentalmente, o direito que têm as crianças, adolescentes e
jovens, considerados cidadãos em processo de formação para o trabalho, de:
- desenvolver, no processo de
aprendizagem, suas potencialidades biológicas, afetivas, espirituais;
- repor as energias gastas no processo
de desenvolver suas potencialidades;
- ter seus conhecimentos, experiências
e habilidades tomados em consideração no processo de aprendizagem;
- ter o que dizer sobre tudo o que diz
respeito à sua vida;
- serem bem acolhidos e bem tratados; e
- aprender, de forma lúdica e alegre,
por meio de jogos, brincadeiras, esporte, lazer e atividades artísticas.
Convém, igualmente, que, na busca da
realização dos direitos dos estudantes, os conselheiros fiquem atentos ao
ambiente favorável a aprendizagem. Incluem-se aí as condições e as relações de
trabalhos, os cuidados com o ambiente físico das escolas e, sobretudo, a
elaboração do projeto pedagógico das escolas.
Não parece tratar-se de direitos e
objetivos difíceis de serem alcançados. Os nossos estudantes na educação
infantil e no ensino fundamental pedem pouco, e temos todas as condições de
realizar seus sonhos e garantir seus direitos.
Se os conselheiros pretendem mesmo
realizar os interesses e direitos dos estudantes, é de suma importância que se
capacitem para fazer um trabalho educativo sobre a função dos conselhos e sua
importância na gestão de outra concepção de estado e no processo de construção
de outro tipo de democracia, bem mais amplo do que a atual democracia
parlamentar representativa.
No século XIX e início
do século XX na França, Alemanha, Iugoslávia, União Soviética, Hungria e
Itália, os trabalhadores, ao perceberem que o modo capitalista de organizar a
produção e a vida em geral não conseguiam realizar os seus interesses e seus direitos,
começaram a se organizar de diferentes maneiras, criando sindicatos, associações,
comissões de fábricas e conselhos.
Do ponto de vista
estritamente político, os conselhos tentavam substituir a democracia
representativa parlamentar por uma democracia mais direta nas fábricas e na
sociedade. Argumentava-se que a democracia representativa parlamentar era pouco
representativa, pois se baseava na separação entre os Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário e em mandatos que não estavam ligados às promessas de campanha e
sim ao que era apresentado pelos Poderes Executivo e Legislativo, mandatos que
não podiam ser revogados antes do prazo para o qual o representante foi eleito,
a não ser em casos muito especiais e graves. Os conselhos seriam mais
democráticos, já que reuniam em
si Poderes Executivos, Legislativos e Judiciais. O mandato
dos conselheiros seria para realizar um programa específico, depois do qual os
representantes seriam substituídos; seriam também trocados quando não
estivessem realizando as funções para as quais foram designados.
No Brasil, sobretudo nos
anos 70 e 80, foi intensa a atuação de diferentes grupos sociais lutando pela
realização de seus interesses e direitos. Foi também nessa época que surgiram
por todo o País os Conselhos Comunitários, criados pelos governos para incorporar
a sociedade civil na gestão da sociedade, e conselhos populares, criados pelos
próprios movimentos sociais para pressionar os governos com vistas à realização
dos direitos das classes exploradas e dominadas.
Texto retirado do Módulo
2 “Concepção, Estrutura e Funcionamento”, Caderno 1, das publicações da SEB/MEC
sobre o Programa de Formação Continuada
de Conselheiros Municipais de Educação. Páginas 09 a 15. Ministério da
Educação. Secretaria de Educação Básica.
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